Esta recusa na discussão de um pertinente
dogma de fé, a Corredenção e Mediação
Universal de Maria, já muito
presentes no senso dos fiéis, revela duas coisas muito claras nas entrelinhas: 1)
a igreja modernista e ecumênica não quer se indispor com alguns grupos
heréticos, ou comprometer o seu tão acalentado diálogo inter-religioso, e 2)
também, não quer dar a grupos tradicionais um importante aceno.
No
entanto, o tiro saiu pela culatra, e um debate até então restrito, se ampliou
dentro da igreja.
O
objeto de toda essa querela fora um documento com o estilo típico do suspeito
cardeal que ironicamente chefia a guarda da ortodoxia na Congregação para a
Doutrina da Fé.
Em
uma nota do Dicastério, indo na contramão de um grande movimento que remonta há
alguns séculos, se diz:
“Tendo em conta a necessidade de explicar o papel
subordinado de Maria a Cristo na obra da Redenção, é sempre inoportuno o uso
do título de Corredentora para definir a cooperação de Maria.” (n. 22)
O documento não nega que Maria cooperou na obra da
redenção, mas desencoraja o uso do termo Corredentora, tão usado por um grande número de santos, teólogos
e pontífices.
O fato é que, o progressismo que invadiu a Igreja,
sempre seguiu uma linha minimalista quanto a devoção mariana. Por isso, a
indiferença ou banalização do culto à Maria sempre fora notável no pontificado
de Bento XVI, Francisco e ora, consolidado no pontificado de Leão XIV. Nada
imprevisto! Os grandes teólogos modernistas, von Balthasar, Rahner, De Lubac,
Suenens, Congar, sempre tiveram uma devoção mariana das mais mesquinhas. O título
sugerido pelo atual pontificado não poderia fugir mais as peculiaridades do
típico catolicismo modernista representado por essa linha de pensamento: “Mãe do povo fiel”.
A
questão é que as mesmas “inconveniências” práticas para o ecumenismo e o
diálogo inter-religioso que envolve as pertinentes propostas de dogma da Corredenção
e da Mediação Universal, não são menos acentuadas nos outros dogmas marianos,
especialmente no dogma de Maria, Mãe de Deus, da Imaculada Conceição e Assunção
divina. Dogmas, aliás, inerentes a corredenção de Maria.
Se chamar Maria de Corredentora ou Medianeira de todas as graças é, para Leão XIV e seus prefeitos, "inapropriado", o que diriam dos santos padres e doutores que a chamaram de “causa da nossa salvação”, “rainha dos anjos”, “causa da nossa alegria”, “paraíso terrestre”, “divino mundo de Deus”, “milagre dos milagres da graça” ou tantos outros títulos efusivos e devotos que culminaram em dogmas?
Mas antes de chegarmos nesse
estágio tão confuso da Igreja contemporânea, os dois títulos marianos sob atual questionamento eram objeto de longa
devoção e um consolidado ad
fidem pertinens entre santos,
pontífices e teólogos, tendo como um de seus mais fervorosos defensores nos
tempos modernos o influente cardeal Mércier, tido por muitos como o responsável
por difundir esta devoção no orbe católico, embora, já se reconheça os
primeiros pontos desta doutrina nos primeiros séculos do cristianismo, e até no Concílio de Éfeso, ganhando grande
impulso na Idade Média por ação dos franciscanos e se tornando sentença
teológica certa no século XV.
O grande teólogo espanhol Antonio Royo Marín
(1913-2005) acredita que Maria é corredentora por duas razões fundamentais:
1º — Por ser a Mãe de Cristo
Redentor, o que acarreta, como vimos anteriormente, a maternidade espiritual
sobre todos os redimidos.
2º — sua dolorosíssima compaixão
ao pé da Cruz, intimamente associada, por livre disposição de Deus, ao tremendo
sacrifício de Cristo Redentor.[1]
Mas há razões ainda mais profundas
e intrigantes para tantos santos e teólogos afirmarem que Maria teve uma
cooperação singular na redenção da humanidade. Uma delas, que se explicita por
um famoso mote Sanguis Christi, sanguis Mariae, afirma o fato de que,
o Deus redentor, assumiu feições humanas no ventre de Maria, de modo que,
por inefável desígnio divino, a Divina Providencia não quis redimir a
humanidade sem a participação de Maria. Palavras que estão em plena consonância
com os evangelhos. “No princípio era o verbo” (Jo 1, 1). Não havia o
homem-Deus, apenas o verbo. E o verbo se fez carne no ventre de Maria,
mostrando que Maria assim torna-se parte indissociável da redenção. É neste
sentido que Sto Irineu de Lion a chamava “causa salutis” (Causa de nossa
salvação)
“Maria, ao prestar obediência,
tornou-se a causa da salvação, tanto para si mesma como para toda a raça
humana.”[2]
Não que ela não precisava ser
salva, ela também o foi como todos, mas de um modo diferente. Escolhida antes
de todos os séculos, preservada do pecado original e unida a Paixão de seu
filho de congruo.
Embora, a redenção fora ação
única e exclusiva de Cristo, ele não deixou de envolver sua mãe nessa missão
com vínculos indissociáveis a história da salvação. É o que Garrigou-Lagrange
afirma em sua La mère du Sauveur et notre vie intérieure:
“Ela se uniu a
Jesus como somente uma mãe poderia, e uma mãe muito santa, em perfeita unidade
de amor por Deus e pelas almas. Essa foi a sua maneira de cumprir o grande
preceito da lei — e que outra maneira mais perfeita poderia haver? A tradição é
clara sobre a união de Maria com o Redentor; ela nunca se cansa de repetir que,
assim como Eva se uniu ao primeiro homem na obra da perdição, Maria se uniu ao
Redentor na obra da redenção.”
Ninguém esteve mais unida nesta
terra ao Redentor em sua redenção do que sua Santíssima Mãe. Maria viveu
todos os momentos da paixão com seu filho, e foi crucificada no coração à vista
do filho despido, coberto de sangue e feridas, abandonado pelos seus discípulos
e humilhado na cruz. Visão esmagadora e devastadora a uma mãe, especialmente a
mais santa e pura das mães. “A espada de dor transpassou sua alma”.
“Bastava bem a morte de Jesus
para salvar o mundo e ainda infinitos mundos, escreveu Sto Afonso Maria de
Ligório, mas quis essa boa Mãe pelo amor que nos tem, com os méritos das suas
dores, que ela ofereceu por nós no Calvário, também ela ajudar a causa da nossa
salvação”.[3]
Um outro teólogo de grande prestígio
a esclarecer as linhas desta tese é Gabriel Roschini:
“Triunfar com Cristo, esmagando a cabeça da serpente, não é outra coisa que ser Corredentora com Cristo”.[4]
Pontífices
O Magistério atesta todas
estas verdades, de modos variados, com exceção dos três últimos, que Maria foi
associada intimamente a Cristo na Redenção; isto é precisamente o que a Igreja
chama de Corredenção.
Leão
XIII em Adiutricem Populix
(1895) afirma:
“[Maria]
depois de ter sido a cooperadora da redenção humana, tornou-se também,
pelo poder quase ilimitado que lhe foi conferido, dispensadora da graça que em
todos os tempos jorra dessa redenção”. (Nº 4)
E em Iucunda Semper Expectatione (1894), ensina
claramente o papel corredentor da Santíssima Virgem:
“Foi Ela quem, unida a Cristo na mais estreita comunhão de
dor e de vontade, participou de modo admirável na Redenção do gênero
humano.”
Antes de Leão XIII, Pio IX,
em Ineffabilis Deus (1854), já a chamava “poderosíssima mediadora e
reconciliadora de todo o mundo junto a seu Filho Unigênito”.
Em 1904, Pio X voltava a
afirmar a mesma doutrina:
“Maria
mereceu ser digníssima reparadora do orbe perdido e, portanto, a dispensadora
de todos os tesouros que Jesus nos conquistou com sua Morte e com seu Sangue” (Ad
Diem Illum)
O mesmo verbo usado por
Leão XIII — consociata — é retomado por Pio X, o que mostra continuidade
magisterial. “Ela foi associada a Cristo
na obra da salvação do gênero humano.”
Após, Pio X, Bento XV segue
a mesma doutrina em sua Carta Apostólica Inter
Sodalicia (1918):
“Com efeito, ela sofreu e quase morreu com seu
Filho sofredor e moribundo, abdicou dos seus direitos maternos para salvação
dos homens, e tanto quanto lhe pertencia, imolou seu Filho para apaziguar a
justiça de Deus, de modo que se pode justamente dizer que Ela resgatou, com
Cristo, o gênero humano. Consequentemente, todas as graças que recebemos do
tesouro são distribuídas pelas mãos da dolorosa virgem.”
“Portanto, além da intercessão dos santos, deve ser incluída a influência dela, a quem os Santos Padres, saudaram com o título Mediatrix omnium gratiam.”
Em 30 de novembro de 1933, Pio XI
foi o primeiro pontífice a se dirigir a Santíssima Virgem sob este título em
discurso dirigido aos peregrinos chegados a Roma de Vicenza:
“Por necessidade, o Redentor não pôde deixar de
associar sua Mãe à sua obra. Por isso, nós a invocamos sob o título de
Corredentora . Ela nos deu o Salvador, acompanhou-o na obra da Redenção até a
própria Cruz, compartilhando com ele as dores da agonia e da morte em que Jesus
consumou a Redenção da humanidade.”
(Discurso aos peregrinos em Vicenza, Itália , 30 de
novembro de 1933.)
Após o papa milanês, Pio XII, em sua encíclica Ad Caeli
Reginam (1954) reafirma a posição de Maria na obra da redenção:
“Dessas
premissas se pode argumentar: Se Maria, na obra da salvação espiritual, foi
associada por vontade de Deus a Jesus Cristo, princípio de salvação, e o foi
quase como Eva foi associada a Adão, princípio de morte, podendo-se afirmar
que a nossa redenção se realizou segundo uma certa "recapitulação",
pela qual o gênero humano, sujeito à morte por causa duma virgem, salva-se
também por meio duma virgem; se, além disso, pode-se dizer igualmente que
esta gloriosíssima Senhora foi escolhida para Mãe de Cristo "para lhe ser
associada na redenção do gênero humano.
Nem mesmo a constituição dogmática
conciliar, Lumen Gentium, deixou de afirmar os termos da Corredenção de
Maria:
“O papel
singular da Virgem Maria como cooperadora está fundamentado em sua maternidade
divina. Ao dar à luz Aquele destinado a realizar a redenção da humanidade, ao
alimentá-lo, apresentá-lo no templo e sofrer com ele enquanto morria na cruz,
ela “cooperou de modo totalmente singular na obra do Salvador” (Nº 61).
Entre
os papas do século XXI, João Paulo II foi dignamente chamado “Papa mariano”, e afirmou
cinco vezes o título de Corredentora à Maria. Em uma dessas ocasiões, ele
afirmou:
“Maria, enquanto concebida e nascida sem a mancha
do pecado, participou de forma admirável nos sofrimentos do seu Divino Filho, a
fim de ser Corredentora da
humanidade” (Audiência
Geral, 08 de setembro de 1982)
“Embora o
chamado de Deus para cooperar na obra da salvação seja dirigido a todo ser
humano, a participação da Mãe do Salvador na redenção da humanidade representa
um evento único e irrepetível.” (Audiência Geral, 9 de abril de
1997)
Os pontos fundamentais da doutrina da Corredenção já encontraram seus ecos nos primeiros séculos do cristianismo. Santo Ireneu (séc. II): chamou à Maria de “causa salutis” (causa de salvação) (Adversus Haereses, III, 22,4) e Santo Agostinho já atribuía à Virgem o título de "colaboradora" na Redenção (cf. De Sancta Virginitate, 6)
No século VII, Modesto de Jerusalém, afirma que, por meio de Maria, “somos redimidos da tirania do demônio ”. São João Damasceno (século VIII) a saúda nestes termos: “Salve, por quem somos redimidos da maldição”. São Bernardo de Claraval (século XII) prega que “por meio dela, o homem foi redimido ”.
Desde então, Maria continuou sendo invocada e afirmada em termos semelhantes, até finalmente ser reconhecida nominalmente como "Corredentora" por grande miríade de Santos.
O cardeal Newman, recentemente elevado a categoria de doutor da Igreja, defendeu o título perante hereges protestantes.
“Tu protesta contra chama-la Corredentora, haverias de considerar pobre esta afirmação que usastes em comparação com a linguagem com que a saudaram os padres A chamando de Mãe de Deus, segunda Eva, mãe de todos os viventes, mãe da vida, estrela da manhã, o novo céu místico, o cetro da ortodoxia, a toda Imaculada Mãe da Santidade e por estilo...”
(Carta a rev. E. B Pusey, 1864)
S. Maximiliano Kolbe, falando sobre os objetivos de sua Milicia da Imaculada assim dizia:
“Estritamente falando, o objetivo da Milícia da Imaculada é o objetivo da própria Imaculada. Ela, de fato, como Corredentora, deseja estender a toda a humanidade os frutos da redenção realizada por seu Filho; ela faz tudo o que pode para ganhar para Cristo os hereges, cismáticos, maçons, judeus e assim por diante.”[5]
“O homem cometeu um pecado de desobediência para com o Criador. Condenado à morte, mas apenas a uma morte temporária, ele deixa o paraíso terrestre para almejar um paraíso celestial através do sofrimento e do trabalho árduo. A partir desse momento, Deus promete um Redentor e uma Corredentora, dizendo: “Porei inimizade entre ti (serpente, Satanás) e a mulher, e entre a tua descendência e a dela; esta te ferirá a cabeça” (cf. Gn 3,15).”[6]
Madre Teresa de Calcutá, Calcutá,
“É claro que Maria é a Corredentora — ela deu a Jesus o seu corpo, e o seu corpo é o que nos salvou. ” Madre Teresa de Calcutá, Entrevista pessoal, Calcutá, 14 de agosto de 1993
[1]
La Virgen María. Teologia y espiritualidade marianas. 2º Ed. Madrid,
Bac, 1997, p. 140
[2]
Adv. Haer ., III, 22, 4.
[3]
Glórias de Maria,
[4]
La Madre de Dios según la fe y la teologia, v. I, Madrid: Apostolado de
la Prensa, 1955, p. 477
