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segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

A Devoção Tupiniquim






            Gilberto Freyre, em seu clássico "obrigatório" para o academicismo brasileiro[i], observa que no prelúdio de nosso desenvolvimento social se verificou "uma profunda confraternização de valores e sentimentos" que jamais teria ocorrido se "outro tipo de cristianismo tivesse dominado a formação social do Brasil; um tipo mais clerical, mais ascético, mais ortodoxo; calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião doce, doméstica, de relação quase de família entre os santos e os homens, que das capelas patriarcais das casas-grandes, das igrejas sempre em festas -- batizados, casamentos, "festas de bandeiras" de santos, de crismas, novenas -- presidiu o desenvolvimento social brasileiro"[ii]. O colonizador português que ancorou em terras brasileiras não era o mais fervoroso e consciente dos católicos europeus, o que não o faria imune, como diz Freyre, "ao contágio de um misticismo quente, voluptuoso, de que se tem enriquecido a sensibilidade, a imaginação, a religiosidade dos brasileiros". Deste "tipo de cristianismo", híbrido e disforme, que une nas festas populares o sagrado e o profano de forma tão íntima que é difícil, até ao observador mais atento, distinguir onde começa um termina o outro, se perpetuou no padrão de religiosidade que se encontra no Brasil. Um catolicismo que estabelece uma estranha relação com os santos que está muito longe de merecer o honroso título de devoção.

Para esta espécie de "fiel", cada santo tem uma função utilitarista em sua vida, geralmente sem muito vínculo com sua missão real. Sta Luzia, por exemplo, para o católico popular brasileiro, é "a santa que cura os olhos"; S. Brás, "o santo que cura a garganta"; Sta Rita de Cássia, "a santa dos casos impossíveis". Assim o povo vê e se relaciona com os santos e, a este modo de relacionamento, ele chama de "devoção". Uma "devoção" fundada no interesse material (sic) e despida de qualquer interesse no aspecto místico da figura sagrada.
Conversei outra vez com uma dessas senhoras "devotas" que costuma ser presença marcante nas festividades. Ela, de modo muito natural, me falava dos santos de sua devoção (ou devolução?)
Cada santo, a que ela tinha alguma "devoção", lhe tinha prestado algum favor. Sobre Sta Rita de Cássia, ela me dizia que lhe era devota porque lhe havia solucionado alguns problemas conjugais. Disse também que era devota de Sta Luzia porque esta lhe havia "curado uma doença nos olhos", e também era devota de S. Pedro porque lhe havia livrado de um naufrágio.
E esta senhora, voltando-se para mim, me perguntou:
– E tu, meu jovem, não tens nenhum santo de devoção?
Respondi-lhe que sim:
– S. Francisco de Assis!
Ela demonstrando interesse, acrescentou:
– Ah, ele cura a lepra, né?
– Não sei! Mas sei que ele cuidou de muitos leprosos
E continuei: “Também sou devoto de S. Bernardo”.
Ela meio que desapontada, me diz:
– Esse eu não conheço, ele cura o quê?
– Não sei o que ele cura, mas sei que ele amou muito a Deus e lutou muito em defesa da fé.
"Ah...," ela exclamou decepcionada.
Por fim, lhe disse que também era devoto de S. Bento, e ela sem titubear, acrescentou:
– Esse eu conheço, é contra picada de cobra e animais peçonhentos!
***
Um catolicismo postiço e sincrético como o brasileiro constitui-se algum obstáculo ao avanço revolucionário? 
Muito se ouve dizer, a respeito de nosso país que "nosso povo é cristão e certas ideologias não hão de prosperar em seu meio". Mas, os fatos depõe contra isso. As grandes revoluções sempre despontaram em países muito religiosos. Isso porque, a religiosidade de um povo não somente pode ser vencida pelos demagogos revolucionários como pode ser um dos elementos mais explorados por eles. As duas nações, à época, mais religiosas do mundo, a França da era jacobina e a santa Rússia dos Czares, viviam momentos de grande efervescência religiosa quando as duas famosas revoluções estouraram em seus meios. E o que se dizer da Cuba, eivada de catolicismo fruto do ardor missionário de Sto Antônio Maria Claret? Até a época de Fidel, a Cuba era um país de vasta maioria católica. Da mesma forma que o comunismo prosperou em regiões altamente religiosas, nota-se que países com pouca religiosidade sempre foram muito inférteis para revoluções.

Parece-me que a ignorância de um povo mostra-se o verdadeiro fator de crescimento revolucionário em seu meio. O Brasil, apresenta-se como país católico, mas é lamentável o gênero de católico que habita estas terras. Totalmente ignorantes de sua fé e escravos das grandes mídias. E tal ignorância não se restringe aos leigos, atinge também boa parte do clero. 
O que se dizer de tudo isso? Primeiro, que a ação revolucionaria não vai buscar os religiosos conscientes, formados e saturados de apologética... Vai buscar os mais vulneráveis: os humildes, semi-letrados, alvos fáceis para um demagogo com boas promessas. E de fato, são estes que tem sucumbido a ideologia nefasta do comunismo. Não são as regiões mais desenvolvidas do país que tem abraçado as doutrinas vermelhas. 






[i] Casa-Grande&Senzaa
[ii] Gilberto Freyre, Casa-Grande&Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.51º Ed. São Paulo: Global, 2006, p. 438


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