Por Erick Ferreira
A
cena é épica! A catedral ornamentada com toda a pompa para
a grandeza de um evento
tipicamente
medieval:
a
sagração real. Bispo e
clero perfilados em
seus postos, prontos a missão que lhes cabia naquela insigne cerimônia.
E, em área de destaque, os símbolos daquele ritual: a
coroa, o cetro e o globus
cruciger, uma
esfera representando o
globo terrestre. Eram
estes os símbolos
que se exibiam nas cerimonias de sagração real nos tempos
medievais.
Mas por que os medievais utilizavam um globo para representar a terra, já que, segundo nossos professores, os medievais acreditavam que a terra era plana?
Mas por que os medievais utilizavam um globo para representar a terra, já que, segundo nossos professores, os medievais acreditavam que a terra era plana?
Globus cruciger usado até hoje em algumas cerimônias de sagração real |
O
globus
cruciger
era um dos símbolos
mais famosos na Idade Média; ele
estava presente
em inúmeras cerimônias, esculturas e pinturas
medievais;
simbolizava
o poder dos
monarcas e
também, era
um
símbolo
cristão de autoridade temporal.
gravura da escultura de Zeus adorada na Roma antiga |
Era
usado desde os tempos do Império Bizantino; e no Império
Romano há notícias
de uma grande escultura
de Zeus segurando um globo terrestre, dos quais restaram apenas gravuras, demonstrando, assim, que antes mesmo da
caluniada
Idade
Média, os homens já acreditavam
na esfericidade
da terra.
A estória de que os medievais acreditavam que a terra era plana é uma
das mentiras mais deslavadas que já se levantou contra uma época. Deslavada porque ignorou-se a quantidade exorbitante de fatos que desmentem esta estória. Porém, felizmente esta
mentira
já vem sendo desmascarada
há
algum tempo. Mas cabe golpeá-la até que ela se dissipe de vez, e a
verdade resplandeça com todo o seu fulgor. Pois, diante
de uma afirmação desconexa e universalmente ensinada em livros didáticos, não há como se manter inerte.
Gravura de Otto III Fonte: Walter Goetz, Historia Universal, Espasa-Calpe, Barcelona, vol. III, pág. 385 |
***
Ao analisarmos esta calunia, uma pergunta vem à tona: como o homem medieval, tão
afeito as verdades da fé, desconheceria um fato que está
testificado até nas Sagradas Escritura que ouvia devotamente todos os domingos? Acaso não teria percebido estes trechos das Escrituras:
“Ele é o que está assentado sobre a redondeza da terra, e os habitantes dela são como gafanhotos diante d’Ele; foi Ele que estendeu os céus como um véu, e os desenrolou como uma tenda para habitar” (Is 40, 22)[1]
“Do Senhor é a terra e tudo o que ela encerra; e a redondeza da terra e os que nela habitam” (Salmo 23 [24], 1) [2]
“E eu estava com ele, e a cada dia me deleitava, brincando continuamente diante dele, brincando sobre o globo terrestre, e achando minhas delicias em estar com os filhos dos homens”. (Prov 8, 30-31) [3]
Esta
última passagem de Provérbios inspirou uma das obras sacras mais famosas da
cristandade medieval, a imagem de Nossa Senhora de Montsserat, padroeira da
Catalunha, datada do século XI (em plena Idade Média). Imagem que
testemunhou a comovente conversão de um gigante da cristandade: Sto
Inácio de Loyola, que passou uma vigília diante dela.
Acaso Sto
Inácio, nas largas horas que passou junto àquela imagem, não
percebeu que a Virgem e o menino Jesus traziam nas mãos uma
representação
do
globo terrestre?
Ora, se Sto Inácio não percebeu tal detalhe, será que o povo
catalão que diariamente se reunia na catedral de Montsserat ainda
não havia notado este
detalhe?
Imagem de N. Sra de Montsserat |
Em
outra imagem medieval, o globo terrestre novamente figura nas mãos
de outro ilustre personagem daquela época: O imperador Otto III
(983-1002) do Sacro Império germânico. E alguns séculos antes, o globo terrestre aparecia na estátua equestre de Carlos Magno, rei dos francos. Datado do
século IX.
Gravura medieval de Carlos de Napoles cm o globus cruciger nas mãos |
E
será que os trovadores medievais tão entendidos das obras
clássicas, não conheceriam um dos maiores clássicos da Idade Média, A Divina Comédia de Dante Alighieri, que chegava até a ser declamada em
praça pública? E se conheciam, acaso não teriam notado esses versos?
Con viso ritornai per tutte quante le sete sfere, e vidi questo globo tal ch’io sorrisi del suo vil sembiante (Com o rosto, com a vista percorri todas as cinco esferas, e vi este globo tal que eu sorri de seu aspecto pequeno ou vil). (Dante Alighieri, Divina Comedia, Paradiso, Canto XXII, 132-135)
Note
a convicção com que o autor descreve os fatos. A esfericidade da
terra era uma certeza medieval! Além
de Dante, outra famosa poesia medieval declarava com veemência a
mesma crença na esfericidade da terra, tanto com palavras como com
imagens. Trata-se do poema L’image
du monde de
Gauthier de Metz escrita no ano de 1245.
Partes originais do poema de Gauthier de Metz, onde se encontram gravuras da imagem da terra em sua forma esférica |
Mas, além destes
dados de suma relevância, há ainda uma farta literatura da época a depor
contra as mentiras erguida contra o homem medieval. A maior
autoridade medieval, o aclamado doctor angelicus, Sto Tomás
de Áquino (1225-1274) assim escrevera em sua Suma Teológica:“O
astrônomo, por exemplo, demonstra a mesma conclusão que o físico,
ou seja, a esfericidade
da terra”
(Sum.
Theol. I., q. 1, ad 2). Ora,
será que o maior escolástico da Idade Média fora
ignorado por sua época? E
Sto Isidoro de Sevilla (560-636) autor das Etimologia
(Livro XIV, 2) -- uma
leitura obrigatória nas escolas medievais --, assim descrevia o
globo terrestre: “Se denomina orbe (terrestre) por causa da
redondeza de seu círculo, porque é semelhante a uma roda; por isso,
a uma roda pequena se dá o nome de orbiculus. O oceano a
rodeia por todos os lados, limitando seus confins como em um círculo.
O orbe está dividido em três partes, uma das quais se denomina
Asia, a outra Europa, e a terceira, África”. (Etimologias, Bac, Madrid, 2004, p. 997-9988) Teriam sido os maiores educadores
medievais -- os escolásticos -- ignorados pela "opinião publica" época?
E muito antes da Idade Média já haviam provas abundantes de que a planicidade da terra nem era considerada entre o povo. Há provas disso em Virgílio, Platão, e na maior autoridade da Antiguidade, Aristóteles, que a este respeito escreveu:
"Obtém-se uma prova adicional a partir da evidência dos sentidos. Se a terra não fosse esférica, os eclipses da Lua não exibiriam os segmentos da forma que exibem. Assim, nas suas fases mensais a Lua assume toda sorte de formas - com a margem reta, convexa e côncava - mas nos eclipses a borda é sempre convexa. Asim, se os eclipses se devem à interposição da Terra, a forma deve ser causada por sua circunferência, e a Terra deve ser esférica. A observação das estrelas também mostra não somente que a Terra é esférica, mas que não é de grande tamanho, visto que uma pequena mudança de posição de nossa parte para o sul ou para o norte altera visivelmente o círculo do horizonte, de modo que as estrelas acima de nossa cabeça mudam consideravelmente a sua posição, e nós não vemos as mesmas estrelas quando nos movemos em direção ao norte ou em direção ao sul. Certas estrelas são vistas no Egito e nas regiões circunvizinhas de Chipre, mas são invisíveis nas terras mais ao norte, e vemos que as estrelas que são continuamente visíveis nas terras do norte se põem nas outras. Isso prova tanto que a terra é esférica quanto que a sua periferia não é extensa, pois do contrário tal pequena mudança de posição não teria tal efeito imediato. (...) Os matemáticos que tentam calcular a circunferência estabelecem a medida de 400.000 estádios. À partir desses argumentos devemos concluir não somente que a massa da Terra é esférica, mas também que ela não é tão grande em comparação com o tamanho de outras estrelas." (Da Caelo 298a)
O homem medieval, e até o homem da antiguidade, já
estava convencido há muito tempo da forma esférica da terra.
E disso atestam seus manuais escolares, seus poetas e autores mais
lidos e discutidos; assim como a própria Bíblia, etc., E diante
disso, como se pode levantar uma mentira desta natureza e a sustentar
por tanto tempo? Só nos resta concluir que só a ignorância de um
povo pode conservar por tanto tempo uma mentira. E neste quesito, os
tempos modernos são campões. Todas as épocas tiveram seus mitos,
mas poucas celebraram tantos mitos quanto nossos tempos.
Notas:
1. "qui sedet super gyrum terræ et habitatores ejus sunt quasi lucustæ qui extendit velut nihilum cælos et expandit eos sicut tabernaculum ad inhabitandum" (Isaiae, XL, XXII)
2. "Domini est terra et plenitudo ejus orbis terrarum et universi qui habitant in eo 2.quia ipse super maria fundavit eum et super flumina præparavit eum" (Psalmorum, XXIII, I-II)
3. "cum eo eram cuncta conponens et delectabar per singulos dies ludens coram eo omni tempore ludens in orbe terrarum et deliciæ meæ esse cum filiis hominum". (Proverbiorum, VIII, XX-XXI)
Post Scriptum: Segundo o historiador James Hannem em seu livro Science versus christianity, a estória de que o homem medieval acreditava que a terra era plana começou a ser levantada no século XVIII:
2. "Domini est terra et plenitudo ejus orbis terrarum et universi qui habitant in eo 2.quia ipse super maria fundavit eum et super flumina præparavit eum" (Psalmorum, XXIII, I-II)
3. "cum eo eram cuncta conponens et delectabar per singulos dies ludens coram eo omni tempore ludens in orbe terrarum et deliciæ meæ esse cum filiis hominum". (Proverbiorum, VIII, XX-XXI)
Post Scriptum: Segundo o historiador James Hannem em seu livro Science versus christianity, a estória de que o homem medieval acreditava que a terra era plana começou a ser levantada no século XVIII:
O
mito de que as pessoas na Idade Média pensavam que a terra era plana
apareceu no século XVIII, como parte da campanha protestante contra
o ensino Católico. Mas isto [acabou] ganhando força no século XIX,
graças a histórias imprecisas como History of the conflict between
religion and science (História do conflito entre ciência e
religião) de John William Draper (1874) e A history of the warfare
of science with theology in Christendom (Uma
história da guera da ciência contra a religião na Cristandade) de
Andrew Dickson White. Ateus e agnósticos defenderam a tese do
conflito por seus próprios prosósitos, mas a pesquisa histórica
gradualmente demonstrou que Draper e White propagaram mais fantasia
do que fato em seus esforços para provar que a ciência e a religião
estavam confinadas em eternos conflitos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário