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segunda-feira, 10 de abril de 2017

As inconveniências morais do liberalismo





Princípios liberais são: a absoluta soberania do individuo com inteira independência de Deus e da sua autoridade; soberania da sociedade com absoluta independência do que não provenha dela mesma; soberania nacional, isto é, o direito do povo para legislar e governar-se com absoluta independência de todo o critério que não seja o da sua própria vontade.
D. Félix Sardá y Salvany [1]



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   Friedrich von Hayek seguindo a tradição clássica liberal, apresenta a liberdade como a “independência da vontade arbitrária de outrem” [2]. Obviamente, esta definição é muito vaga para definir um conceito tão complexo e explorado por tantas doutrinas diferentes como é o conceito de liberdade, entretanto, este parece ser o conceito mais evocado entre os pensadores liberais.
Mas antes de fazer desta liberdade o suprassumo da existência, é necessário compreender o que ela significa na prática. Tal tarefa nunca foi tão simples, de modo que na língua inglesa, (língua materna do liberalismo) existem dois termos para se referir a liberdade: freedom e liberty.
Por que duas palavras para se referir a mesma realidade? Todos os grandes pensadores ocidentais, especialmente os ingleses, que se dedicaram a esta questão, notaram que haviam muitas noções de liberdade entranhadas no imaginário popular, mas, especificamente dois conceitos eram os mais comuns. Um deles se referia ao estado de liberdade de limitações de ordem legal; ou ausência de intervenções na vida das pessoas por autoridades arbitrárias, a que convencionaram chamar liberty. A outra se referia a uma certa autonomia individual em relação, tanto a autoridade arbitrária, quanto a prescrições morais ou intervenções de quaisquer natureza na vida publica ou privada, a que chamaram freedom.
Foi a esta primeira palavra, liberty, que se referiu Hayek ao definir a liberdade como “a independência da vontade arbitrária de outrem”; e a ela se referiu John Stuart Mill ao escrever seu famoso ensaio On liberty (1869), um dos fundamentos teóricos do liberalismo clássico.
Portanto, a liberdade que norteia o liberalismo não é a liberdade interior expressa na teologia católica; nem a liberdade naturalista e descompromissada dos hippies; mas a liberdade civil ou social dos indivíduos, que lhes permitem tomarem decisões sobre suas próprias vidas sem sofrer intervenções de qualquer autoridade por conta destas decisões.
Mas, e se essas decisões forem prejudiciais ao individuo que as adota? Não seria um ato de caridade intervir de alguma forma para impedir a sua tragédia pessoal? Stuart Mill responde a esta interrogação da seguinte forma: “Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e sua mente, o individuo é soberano”. E algumas linhas adiante, continua: “O único propósito com o qual se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade, é impedir dano a outrem. O próprio bem do individuo, seja material, seja moral, não constitui justificação suficiente”. Perceba que o liberalismo de Stuart Mill não se preocupa tanto com o bem estar do indivíduo; preocupa-se exclusivamente com sua liberdade, independentemente se esta liberdade for para o bem ou para o mal.
Este argumento é constantemente evocado contra as internações compulsivas de alcoólatras e usuários de drogas que vagam ao leu pelas metrópoles e qualquer intervenção na vida de pessoas que padecem das mais degradantes situações. O argumento oposto, geralmente é o de que ninguém sabe o que é melhor para si do que o próprio individuo.
Mas tais situações, tão corriqueiras em nossa contemporaneidade, nos mostram que os indivíduos entregues a própria vontade nunca souberam se orientar sozinhos sem interferências benéficas, seja de religiões ou de uma tradição familiar; eles sempre precisaram do auxílio de uma comunidade organizada de pessoas, que por sua vez, tiveram que aprender com séculos de experiências registradas em uma tradição – religiosa, na maioria dos casos – sobre a melhor forma de se portar em sociedade e se orientar na vida. A princípio, foi do relacionamento entre Deus e o homem apresentado pelas religiões que as sociedades estabeleceram as formas mais adequada de relação entre seus cidadãos. O cristianismo incluiu nas relações humanas um princípio imprescindível: a caridade como mediador das relações. Tal caridade se apresenta esplendidamente em um trecho de uma epístola de S. João: “Se alguém diz: Amo a Deus, mas odeia o seu irmão, é mentiroso, pois não ama o seu irmão a quem vê, como amará a Deus a quem não vê?” (I João 4, 20). O liberalismo ao proclamar a consciência humana como a suma juíza dos atos morais e a liberdade como o sumo bem da existência, excluiu definitivamente a soberania de Deus sobre as vontades, implicando consequentemente na exclusão da caridade cristã como reflexo da devoção a Deus e regimento das relações em sociedade. Esta mudança converteu as relações sociais em meros jogos de interesses, tornando o individualismo a medida padrão de tudo. Quem mais afagar e servir os egos inflados pelo individualismo, mais será digno de ser amado; mas quem estaria disposto a tal atitude, num mundo onde todos buscam serem amados e servidos? Por isso, ao contrário do que se esperava, as relações humanas na modernidade não se tornaram mais livres; tornaram-se, pelo contrário, mais dependentes.
Se o homem for entregue a sua própria vontade, com a absolutização do seu eu, sem qualquer tipo de intervenção em suas ações, em pouco tempo ele estará arruinado. E quando falo em intervenção, não me refiro especificamente em intervenção coercitiva, mas em interferências morais, como o fez a religião e a família ao longo de tantos séculos com suas críticas construtivas a condutas degradantes praticadas na vida privada, tais como: uso de entorpecentes; aborto; prostituição, suicídio, etc. Pois mesmo que tais ações, aparentemente digam respeito unicamente ao individuo que as pratica, ela afeta a todos que estão a ele ligado, direta ou indiretamente.
Por isso, neste princípio apresentado por Stuart Mill, reside o ponto mais perigoso desta liberdade que orienta o liberalismo: acreditar que o homem se basta; que não precisa de uma autoridade; ou pode prescindir da coletividade em todas as suas decisões [ ]; que a sua vontade é absoluta; e que não há uma verdade objetiva a guiar a boa conduta, a que todos devem obedecer, reconhecida pela tradição ao longo de séculos.
Por isso, o liberalismo nasce do mesmo germe revolucionário que gerou o comunismo; entoa o mesmo grito de rebelião que ecoou na história e na eternidade: non serviam; rejeita a mesma tradição que conduziu a humanidade por tantos séculos; e sonha com a mesma redenção terrena, e deifica o homem como o único senhor a ser servido. Por isso, o liberalismo é meramente um irmão dialético do comunismo.
Por essa defesa intransigente da soberania individual, o liberalismo é, essencialmente, um sistema ateu, e seus princípios inconciliáveis com a fé católica, pois não reconhece a soberania de Deus e a autoridade da religião.
Por este motivo, escreveu Mons. Felix Salvany:
Na ordem das ideias, é um conjunto de ideias falsas; na ordem dos fatos é um conjunto de fatos criminosos”. Ao escrever estas duras palavras, D. Salvany, possuía razões justíssimas e ponderáveis, e a mais grave delas, por certo é, a deificação da consciência humana, que tais ideias implicam. Pois num mundo onde todos os homens são deuses, não há espaço para a caridade, pois todos acreditam que devem ser servidos; não há espaço para a fé pois todos acreditam que devem ser cultuados.
Mas tal postura culmina em uma grande frustração social para os seres individualistas nascidos desta mentalidade liberal, eles terão que disputar o posto mais elevado do panteão com outros milhões de semi-deuses que também buscam seus adoradores.

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1. O liberalismo é pecado. São Paulo: Editora Panorama, 1949, p. 17-18
2. The Constitution of liberty (1960). Edição brasileira: Friedrich von Hayek. Os fundamentos da liberdade, Trad: Ana Maria Capovilla e José Italo Stelle. São Paulo: Visão, 1983, p. 5
3. A este respeito, sou concorde a posição de um liberal Jacques Maritain: “o homem não pode progredir na sua vida específica que lhe é própria, ao mesmo tempo intelectual e moralmente, se não fôr auxiliado pela experiência coletiva que as gerações precedentes acumularam e conservaram, e por uma transmissão regular de conhecimentos adquiridos” (Rumos da educação. 4º ed. Rio de Janeiro. Editora Agir, 1966. p. 27)


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