Princípios
liberais são: a absoluta soberania do individuo com inteira
independência de Deus e da sua autoridade; soberania da sociedade
com absoluta independência do que não provenha dela mesma;
soberania nacional, isto é, o direito do povo para legislar e
governar-se com absoluta independência de todo o critério que não
seja o da sua própria vontade.
D.
Félix Sardá y Salvany [1]
***
Friedrich
von Hayek seguindo a tradição clássica liberal, apresenta a
liberdade como a “independência da vontade arbitrária de outrem”
[2]. Obviamente, esta definição é muito vaga para definir um
conceito tão complexo e explorado por tantas doutrinas diferentes
como é o conceito de liberdade, entretanto, este parece ser o
conceito mais evocado entre os pensadores liberais.
Mas
antes de fazer desta liberdade o suprassumo da existência, é
necessário compreender o que ela significa na prática. Tal tarefa
nunca foi tão simples, de modo que na língua inglesa, (língua
materna do liberalismo) existem dois termos para se referir a
liberdade: freedom e liberty.
Por
que duas palavras para se referir a mesma realidade? Todos os grandes
pensadores ocidentais, especialmente os ingleses, que se dedicaram a
esta questão, notaram que haviam muitas noções de liberdade
entranhadas no imaginário popular, mas, especificamente dois
conceitos eram os mais comuns. Um deles se referia ao estado de
liberdade de limitações de ordem legal; ou ausência de
intervenções na vida das pessoas por autoridades arbitrárias, a
que convencionaram chamar liberty. A outra se referia a uma
certa autonomia individual em relação, tanto a autoridade
arbitrária, quanto a prescrições morais ou intervenções de
quaisquer natureza na vida publica ou privada, a que chamaram
freedom.
Foi
a esta primeira palavra, liberty, que se referiu Hayek ao
definir a liberdade como “a independência da vontade arbitrária
de outrem”; e a ela se referiu John Stuart Mill ao escrever seu
famoso ensaio On liberty (1869), um dos fundamentos teóricos
do liberalismo clássico.
Portanto,
a liberdade que norteia o liberalismo não é a liberdade interior
expressa na teologia católica; nem a liberdade naturalista e
descompromissada dos hippies; mas a liberdade civil ou social
dos indivíduos, que lhes permitem tomarem decisões sobre suas
próprias vidas sem sofrer intervenções de qualquer autoridade por
conta destas decisões.
Mas,
e se essas decisões forem prejudiciais ao individuo que as adota?
Não seria um ato de caridade intervir de alguma forma para impedir a
sua tragédia pessoal? Stuart Mill responde a esta interrogação da
seguinte forma: “Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e sua
mente, o individuo é soberano”. E algumas linhas adiante,
continua: “O único propósito com o qual se legitima o exercício
do poder sobre algum membro de uma comunidade civilizada contra a sua
vontade, é impedir dano a outrem. O próprio bem do individuo,
seja material, seja moral, não constitui justificação suficiente”.
Perceba que o liberalismo de Stuart Mill não se preocupa tanto com o
bem estar do indivíduo; preocupa-se exclusivamente com sua
liberdade, independentemente se esta liberdade for para o bem ou para
o mal.
Este
argumento é constantemente evocado contra as internações
compulsivas de alcoólatras e usuários de drogas que vagam ao leu
pelas metrópoles e qualquer intervenção na vida de pessoas que
padecem das mais degradantes situações. O argumento oposto,
geralmente é o de que ninguém sabe o que é melhor para si do que o
próprio individuo.
Mas
tais situações, tão corriqueiras em nossa contemporaneidade, nos
mostram que os indivíduos entregues a própria vontade nunca
souberam se orientar sozinhos sem interferências benéficas, seja de
religiões ou de uma tradição familiar; eles sempre precisaram do
auxílio de uma comunidade organizada de pessoas, que por sua vez,
tiveram que aprender com séculos de experiências registradas em uma
tradição – religiosa, na maioria dos casos – sobre a melhor
forma de se portar em sociedade e se orientar na vida. A princípio,
foi do relacionamento entre Deus e o homem apresentado pelas
religiões que as sociedades estabeleceram as formas mais adequada de
relação entre seus cidadãos. O cristianismo incluiu nas relações
humanas um princípio imprescindível: a caridade como mediador das
relações. Tal caridade se apresenta esplendidamente em um trecho
de uma epístola de S. João: “Se alguém diz: Amo a Deus,
mas odeia o seu irmão, é mentiroso, pois não ama o seu irmão a
quem vê, como amará a Deus a quem não vê?” (I João 4, 20). O
liberalismo ao proclamar a consciência humana
como a suma juíza dos atos morais
e a liberdade como o sumo bem
da existência, excluiu
definitivamente a
soberania de Deus sobre as vontades, implicando consequentemente na
exclusão da caridade cristã
como reflexo da devoção a Deus e
regimento das relações em sociedade.
Esta mudança converteu as relações sociais em meros jogos de
interesses, tornando o individualismo a medida padrão de tudo. Quem
mais afagar
e servir
os egos inflados pelo individualismo, mais será
digno de ser
amado;
mas quem
estaria disposto
a tal atitude, num mundo onde todos buscam serem amados e servidos?
Por isso, ao contrário do que se esperava, as relações humanas na
modernidade não se tornaram mais livres; tornaram-se, pelo
contrário, mais dependentes.
Se
o homem for entregue a sua própria vontade, com a absolutização do
seu eu, sem qualquer tipo de intervenção em suas ações, em pouco
tempo ele estará arruinado. E quando falo em intervenção, não me
refiro especificamente em intervenção coercitiva, mas em
interferências morais, como o fez a religião e a família ao longo
de tantos séculos com suas críticas construtivas a condutas
degradantes praticadas na vida privada, tais como: uso de
entorpecentes; aborto; prostituição, suicídio, etc. Pois mesmo que
tais ações, aparentemente digam respeito unicamente ao individuo
que as pratica, ela afeta a todos que estão a ele ligado, direta ou
indiretamente.
Por
isso, neste princípio apresentado por Stuart Mill, reside o ponto
mais perigoso desta liberdade que orienta o liberalismo: acreditar
que o homem se basta; que não precisa de uma autoridade; ou pode
prescindir da coletividade em todas as suas decisões [ ]; que a sua
vontade é absoluta; e que não há uma verdade objetiva a guiar a
boa conduta, a que todos devem obedecer, reconhecida pela tradição
ao longo de séculos.
Por
isso, o liberalismo nasce do mesmo germe revolucionário que gerou o
comunismo; entoa o mesmo grito de rebelião que ecoou na história e
na eternidade: non serviam; rejeita a mesma tradição que
conduziu a humanidade por tantos séculos; e sonha com a mesma
redenção terrena, e deifica o homem como o único senhor a ser
servido. Por isso, o liberalismo é meramente um irmão dialético do
comunismo.
Por
essa defesa intransigente da soberania individual, o liberalismo é,
essencialmente, um sistema ateu, e seus princípios inconciliáveis
com a fé católica, pois não reconhece a soberania de Deus e a
autoridade da religião.
Por
este motivo, escreveu Mons. Felix Salvany:
“Na
ordem das ideias, é um conjunto de ideias falsas; na ordem dos fatos
é um conjunto de fatos criminosos”. Ao escrever estas duras
palavras, D. Salvany, possuía razões justíssimas e ponderáveis, e
a mais grave delas, por certo é, a deificação da consciência
humana, que tais ideias implicam. Pois num mundo onde todos os homens
são deuses, não há espaço para a caridade, pois todos acreditam
que devem ser servidos; não há espaço para a fé pois todos
acreditam que devem ser cultuados.
Mas
tal postura culmina em uma grande frustração social para os seres
individualistas nascidos desta mentalidade liberal, eles terão que
disputar o posto mais elevado do panteão com outros milhões de
semi-deuses que também buscam seus adoradores.
___________________
1.
O liberalismo é pecado. São Paulo: Editora Panorama, 1949,
p. 17-18
2.
The Constitution of liberty (1960). Edição brasileira:
Friedrich von Hayek. Os fundamentos da liberdade, Trad: Ana Maria
Capovilla e José Italo Stelle. São Paulo: Visão, 1983, p. 5
3.
A este respeito, sou concorde a posição de um liberal Jacques
Maritain: “o homem não pode progredir na sua vida específica que
lhe é própria, ao mesmo tempo intelectual e moralmente, se não fôr
auxiliado pela experiência coletiva que as gerações precedentes
acumularam e conservaram, e por uma transmissão regular de
conhecimentos adquiridos” (Rumos da educação. 4º ed. Rio de
Janeiro. Editora Agir, 1966. p. 27)
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