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sexta-feira, 14 de abril de 2017

A falácia dos povos ateus


Por Erick Ferreira





Nunca, em nenhuma sociedade humana, desde que os homens se tornaram criaturas racionais, vieram, ou teriam vividos, sem religião

Leo Tolstoy, What is religion



Lançai um olhar por toda a superfície da terra, e podereis achar cidades sem trincheiras, sem letras, sem magistrados, povos sem habitações, sem uso de dinheiro, mas um povo sem Deus, sem orações, sem ritos religiosos, sem sacrifícios, nunca se viu

Plutarco










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Há duas disposições que são próprias do gênero humano: o senso de beleza e a disposição para a religião. Ambas se verificam facilmente por toda parte. Vamos tratar primeiro desta última: a predisposição religiosa do homem, algo que o separa radicalmente dos seres irracionais.

Toda a terra está repleta das experiências religiosas do homem, de modo que há tempos se constatou que todos os povos sempre foram religiosos, demonstrando assim que a existência de Deus e a sua busca é uma necessidade sentida por todos os homens em todas as épocas. Até mesmo os poucos ateus – que sempre existiram em estado errático, como diz Armand de Quatrefages – nunca conseguiram se esquivar totalmente deste problema, e passaram suas vidas inteiras inquietos com a ideia de um Deus.

Embora existam algumas objeções a afirmação de que não existam povos ateus, elas são muitos frágeis para se sustentar. Apresentemos aqui algumas delas.
David Hume em sua obra History of natural religion, insinuou que poderiam existir povos sem religiões, evocando certos relatos de viajantes: “Se aquilo que os historiadores e os viajantes dizem é verdade, foram descobertas algumas nações que não mantinham quaisquer opiniões religiosas”. Percebe-se neste trecho uma clara insegurança do autor em sua afirmação.
Alguns anos depois, outra afirmação muito semelhante em defesa da existência de povos ateus vem se somar a de Hume. O renomado historiador Will Durant, escreveu em sua The Story of Civilization: “Se definirmos a religião como o culto das forças sobrenaturais, devemos observar que no início de alguns povos não havia religião. Em certas tribos de pigmeus da África não se observava culto ou ritos; eles não tinham totem; nem fetiches; nem deuses; eles sepultavam seus mortos sem cerimônias, e pareciam dar pouca importância a elas; eles tinham carência de superstições, isto se pudermos acreditar de alguma forma nos incríveis relatos de viajantes”. (DURANT, 1942, p. 56).
As afirmações de Durant, assim como a de Hume estão fundamentadas sobre testemunhos de viajantes; viajantes de um passado bem remoto, em especial, do geógrafo grego Strabo, (64 a.C. – c.23 d. C) que registrou esta suposta descoberta em suas Geográfias (I, 2, 8).
Mas tal relato contrasta radicalmente com uma indiscutível autoridade dos tempos de Strabo. O escritor grego Plutarco, o afamado pai da biografia (46/49, 125, a. C) que viveu alguns anos antes de Strabo, e escreveu em suas Morais (Vol. V, Contra Colotes) este relevante testemunho: Lançai um olhar por toda a superfície da terra, e podereis encontrar cidades sem muralhas, sem literatura, sem reis, sem habitações, sem uso de dinheiro, sem teatros e lugares de exercício, mas um povo sem templos e deuses; sem orações, sem ritos religiosos, sem sacrifícios, tal, nunca se viu (PLUTARCO, 1883, p. 920) E continua o autor na mesma obra: “É mais fácil fundar uma cidade no ar do que construir uma cidade sem a crença nos deuses”.

A afirmação de Plutarco vem receber confirmação da etnografia do Dr. Friedrich Ratzel – aclamado como “Pai da Geografia Moderna” – que assim escreve em sua História da Humanidade: “A etnografia não conhece raças desprovidas de religião, mas somente diferenças no grau em que as ideias religiosas estão desenvolvidas” (RATZEL, 1896, p. 40), e junto a esse importante relato da etnografia, ainda acrescento a conclusão notável do célebre naturalista francês Armand de Quatrefages, que em sua histoire générale des races humaines assim pontifica: “Após longo tempo de estudos detalhados sobre todas as raças do globo, cheguei a conclusões absolutamente contrárias as precedentes [...] Procurei o ateísmo com o maior cuidado, e não o encontrei em lugar nenhum, a não ser em estado errático; entre algumas seitas filosóficas de nações das mais antigas civilizações.” (QUATREFAGES, 1887, p. 252-283)

Mas, além destes breves testemunhos de especialistas, ainda resolvi reunir o testemunho de notórios ateus e anticlericais que muito a contra-gosto deporam em favor desta verdade, como Jean-Jacques Rousseau, que em seu Do Contrato Social escreveu: “Jamais se fundou nenhum Estado, sem que a religião se servisse de fundamento” (1.4, c. 8); e ainda, a opinião de Voltaire, que costumava terminar suas cartas com uma frase tenebrosa “Esmagai a infame”, em referência a Igreja. Este ferrenho inimigo da religião, assim escreveu em seu Tratado da Tolerância: “Onde quer que há uma sociedade, a religião é de todo necessária” (Tratado da Tolerância, c. 20)

Esta predisposição natural dos homens pela religião – facilmente observada em todos os povos – segundo alguns ateus, trata-se de uma resposta evoluída da natureza. Se esta tese estiver correta, significa, conseguintemente, que o ateísmo só existe em estágios inferiores da humanidade e entre os animais.
Há desejos no homem que o impelem inevitavelmente ao absoluto, como o desejo de beleza, de verdade, de amor, de bondade, e tais desejos não encontram respostas satisfatórias no imanente, no material, e no limítrofe horizonte da realidade física, ele tem que lançar-se na transcendência que só a experiência religiosa pode oferecer. Pois o homem não pode conter seu ímpeto de infinto, sua vontade de sentido, por isso, não pode viver sem religião.


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O fato de encontrarmos tão poucos adeptos do ateísmo, e poucos povos que o tenham por aceitável, nos mostram que o ateísmo nunca foi um fenômeno natural na humanidade. Os primeiros sinais de povos cuja religiosidade é mínima, é próprio da modernidade. E tal fenômeno, como é facilmente observável, não nasce espontaneamente, nasce de forma artificial, forjado por Estados e instituições que passam a ser controlados por minoras anti-religiosas, e a partir da máquina estatal, passam a promover o ateísmo entre o povo. Porém, o modo como a promoção do ateísmo acontece na modernidade é digno de nota. Busca-se, em primeiro lugar, tornar odiosa a religião a vista de todos por meio de calúnias e difamações incessantes contra ela. Tal ação gera no povo, antes uma teofobia em vez de ateísmo propriamente dito, e consequentemente, o abandono da religião hegemônica.
Por isso assistimos sociedades que outrora foram profundamente religiosas como a Suécia, Canadá, Alemanha, etc, em pouco tempo se converterem em sociedades anti-religiosas.
Por outro lado, se observa na história que nenhuma sociedade pode ficar por muito tempo sem uma religião. Quando uma religião é deixada de lado, logo, outra se apresenta para ocupar o seu lugar. Por isso, nestes países supracitados se constata uma adesão maciça de seus cidadãos a seitas exóticas ou totalmente opostas aos valores culturais nos quais estas sociedades nasceram. Portanto, não se pode dizer que estes países se tornaram ateus, ou indiferentes a religião, se tornaram simplesmente anti-cristãos, e por conseguinte, tendem a buscar religiões que estejam mais distantes do espírito cristão.


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Bibliográfia:

DURANT, Ariel., DURANT, Will. The Story of Civilization – Our oriental heritage. Vol. 1, New York: Simon and Schuster, 1942. 
PLUTARCO, Morals. Vol. 5 Boston: Little, Brown and Company, 1883.
QUATREFAGES, Armand. histoire générale des races humaines: introdution a l’étude des races humaines. Paris: A. Hennuyer, Imprimieur-éditeur, 1887.
RATZEL, Friedrich. The History of Mankind, vol. I. Translater: A. J Butler, London: MaCmillan and Co, 1896.

segunda-feira, 10 de abril de 2017

As inconveniências morais do liberalismo





Princípios liberais são: a absoluta soberania do individuo com inteira independência de Deus e da sua autoridade; soberania da sociedade com absoluta independência do que não provenha dela mesma; soberania nacional, isto é, o direito do povo para legislar e governar-se com absoluta independência de todo o critério que não seja o da sua própria vontade.
D. Félix Sardá y Salvany [1]



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   Friedrich von Hayek seguindo a tradição clássica liberal, apresenta a liberdade como a “independência da vontade arbitrária de outrem” [2]. Obviamente, esta definição é muito vaga para definir um conceito tão complexo e explorado por tantas doutrinas diferentes como é o conceito de liberdade, entretanto, este parece ser o conceito mais evocado entre os pensadores liberais.
Mas antes de fazer desta liberdade o suprassumo da existência, é necessário compreender o que ela significa na prática. Tal tarefa nunca foi tão simples, de modo que na língua inglesa, (língua materna do liberalismo) existem dois termos para se referir a liberdade: freedom e liberty.
Por que duas palavras para se referir a mesma realidade? Todos os grandes pensadores ocidentais, especialmente os ingleses, que se dedicaram a esta questão, notaram que haviam muitas noções de liberdade entranhadas no imaginário popular, mas, especificamente dois conceitos eram os mais comuns. Um deles se referia ao estado de liberdade de limitações de ordem legal; ou ausência de intervenções na vida das pessoas por autoridades arbitrárias, a que convencionaram chamar liberty. A outra se referia a uma certa autonomia individual em relação, tanto a autoridade arbitrária, quanto a prescrições morais ou intervenções de quaisquer natureza na vida publica ou privada, a que chamaram freedom.
Foi a esta primeira palavra, liberty, que se referiu Hayek ao definir a liberdade como “a independência da vontade arbitrária de outrem”; e a ela se referiu John Stuart Mill ao escrever seu famoso ensaio On liberty (1869), um dos fundamentos teóricos do liberalismo clássico.
Portanto, a liberdade que norteia o liberalismo não é a liberdade interior expressa na teologia católica; nem a liberdade naturalista e descompromissada dos hippies; mas a liberdade civil ou social dos indivíduos, que lhes permitem tomarem decisões sobre suas próprias vidas sem sofrer intervenções de qualquer autoridade por conta destas decisões.
Mas, e se essas decisões forem prejudiciais ao individuo que as adota? Não seria um ato de caridade intervir de alguma forma para impedir a sua tragédia pessoal? Stuart Mill responde a esta interrogação da seguinte forma: “Sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e sua mente, o individuo é soberano”. E algumas linhas adiante, continua: “O único propósito com o qual se legitima o exercício do poder sobre algum membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade, é impedir dano a outrem. O próprio bem do individuo, seja material, seja moral, não constitui justificação suficiente”. Perceba que o liberalismo de Stuart Mill não se preocupa tanto com o bem estar do indivíduo; preocupa-se exclusivamente com sua liberdade, independentemente se esta liberdade for para o bem ou para o mal.
Este argumento é constantemente evocado contra as internações compulsivas de alcoólatras e usuários de drogas que vagam ao leu pelas metrópoles e qualquer intervenção na vida de pessoas que padecem das mais degradantes situações. O argumento oposto, geralmente é o de que ninguém sabe o que é melhor para si do que o próprio individuo.
Mas tais situações, tão corriqueiras em nossa contemporaneidade, nos mostram que os indivíduos entregues a própria vontade nunca souberam se orientar sozinhos sem interferências benéficas, seja de religiões ou de uma tradição familiar; eles sempre precisaram do auxílio de uma comunidade organizada de pessoas, que por sua vez, tiveram que aprender com séculos de experiências registradas em uma tradição – religiosa, na maioria dos casos – sobre a melhor forma de se portar em sociedade e se orientar na vida. A princípio, foi do relacionamento entre Deus e o homem apresentado pelas religiões que as sociedades estabeleceram as formas mais adequada de relação entre seus cidadãos. O cristianismo incluiu nas relações humanas um princípio imprescindível: a caridade como mediador das relações. Tal caridade se apresenta esplendidamente em um trecho de uma epístola de S. João: “Se alguém diz: Amo a Deus, mas odeia o seu irmão, é mentiroso, pois não ama o seu irmão a quem vê, como amará a Deus a quem não vê?” (I João 4, 20). O liberalismo ao proclamar a consciência humana como a suma juíza dos atos morais e a liberdade como o sumo bem da existência, excluiu definitivamente a soberania de Deus sobre as vontades, implicando consequentemente na exclusão da caridade cristã como reflexo da devoção a Deus e regimento das relações em sociedade. Esta mudança converteu as relações sociais em meros jogos de interesses, tornando o individualismo a medida padrão de tudo. Quem mais afagar e servir os egos inflados pelo individualismo, mais será digno de ser amado; mas quem estaria disposto a tal atitude, num mundo onde todos buscam serem amados e servidos? Por isso, ao contrário do que se esperava, as relações humanas na modernidade não se tornaram mais livres; tornaram-se, pelo contrário, mais dependentes.
Se o homem for entregue a sua própria vontade, com a absolutização do seu eu, sem qualquer tipo de intervenção em suas ações, em pouco tempo ele estará arruinado. E quando falo em intervenção, não me refiro especificamente em intervenção coercitiva, mas em interferências morais, como o fez a religião e a família ao longo de tantos séculos com suas críticas construtivas a condutas degradantes praticadas na vida privada, tais como: uso de entorpecentes; aborto; prostituição, suicídio, etc. Pois mesmo que tais ações, aparentemente digam respeito unicamente ao individuo que as pratica, ela afeta a todos que estão a ele ligado, direta ou indiretamente.
Por isso, neste princípio apresentado por Stuart Mill, reside o ponto mais perigoso desta liberdade que orienta o liberalismo: acreditar que o homem se basta; que não precisa de uma autoridade; ou pode prescindir da coletividade em todas as suas decisões [ ]; que a sua vontade é absoluta; e que não há uma verdade objetiva a guiar a boa conduta, a que todos devem obedecer, reconhecida pela tradição ao longo de séculos.
Por isso, o liberalismo nasce do mesmo germe revolucionário que gerou o comunismo; entoa o mesmo grito de rebelião que ecoou na história e na eternidade: non serviam; rejeita a mesma tradição que conduziu a humanidade por tantos séculos; e sonha com a mesma redenção terrena, e deifica o homem como o único senhor a ser servido. Por isso, o liberalismo é meramente um irmão dialético do comunismo.
Por essa defesa intransigente da soberania individual, o liberalismo é, essencialmente, um sistema ateu, e seus princípios inconciliáveis com a fé católica, pois não reconhece a soberania de Deus e a autoridade da religião.
Por este motivo, escreveu Mons. Felix Salvany:
Na ordem das ideias, é um conjunto de ideias falsas; na ordem dos fatos é um conjunto de fatos criminosos”. Ao escrever estas duras palavras, D. Salvany, possuía razões justíssimas e ponderáveis, e a mais grave delas, por certo é, a deificação da consciência humana, que tais ideias implicam. Pois num mundo onde todos os homens são deuses, não há espaço para a caridade, pois todos acreditam que devem ser servidos; não há espaço para a fé pois todos acreditam que devem ser cultuados.
Mas tal postura culmina em uma grande frustração social para os seres individualistas nascidos desta mentalidade liberal, eles terão que disputar o posto mais elevado do panteão com outros milhões de semi-deuses que também buscam seus adoradores.

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1. O liberalismo é pecado. São Paulo: Editora Panorama, 1949, p. 17-18
2. The Constitution of liberty (1960). Edição brasileira: Friedrich von Hayek. Os fundamentos da liberdade, Trad: Ana Maria Capovilla e José Italo Stelle. São Paulo: Visão, 1983, p. 5
3. A este respeito, sou concorde a posição de um liberal Jacques Maritain: “o homem não pode progredir na sua vida específica que lhe é própria, ao mesmo tempo intelectual e moralmente, se não fôr auxiliado pela experiência coletiva que as gerações precedentes acumularam e conservaram, e por uma transmissão regular de conhecimentos adquiridos” (Rumos da educação. 4º ed. Rio de Janeiro. Editora Agir, 1966. p. 27)